quinta-feira, 15 de agosto de 2013

QUEM FOI MAIS LOUCO AFINAL? HITLER OU MUSSOLINI? QUEM ADMIRAVA QUEM? EIS A QUESTÃO.


A história macabra

Apesar das intensas ocupações militares, conta-se que Adolf Hitler costumava visitar escolas e hospitais. Em 1941, agendou uma visita ao hospício de alienados de Berlim. Lá o chanceler, surpreendido com a revelação do diretor segundo a qual 14 internos acreditavam ser Adolf Hitler em pessoa, insistiu em visitá-los e cumprimentá-los. No instante dos cumprimentos, contudo, estourou uma discussão do tipo “quem era, quem não era” que redundou em autêntico pugilato, bigodinhos postiços e suásticas voando para todos os lados. Assentada a poeira, houve uma certa indecisão dos assessores em saber qual era o Führer original, até que, livrando-se da confusão, um autêntico Hitler, vermelho de cólera e gritando ordens, apresentou-se e foi reconhecido pelos assessores. No dia seguinte, o ditador ordenou a invasão da Rússia.
Como toda narrativa humorística, a anedota contém sempre um pouco de verdade. O Império de Hitler, de Mark Mazower (Companhia das Letras, 816 págs., R$ 79,50), ilustra de modo brilhante esse conto macabro. Um dos seus argumentos centrais é que a estrutura bizarra da ocupação alemã, aguçada com o fanatismo da “missão racial germanizadora” após 1941, foi o principal componente da derrota nazista. Muito antes que o mundo tivesse conhecimento do horror dos superlotados campos da SS no Reich em 1945, e bem longe dos olhos de todos os jornalistas, os campos de prisioneiros da Wehrmacht na frente Leste continham horrores ainda maiores em magnitude. Em fevereiro de 1942, dos 3,9 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, apenas 1,1 milhão continuavam vivos e, desses, somente 400 mil estavam capacitados para trabalhar. A taxa de mortalidade final entre os prisioneiros de guerra soviéticos em poder dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial foi de 57%. Isso significava que apenas num único dia perecia um número igual ao de soldados britânicos e americanos mortos sob a custódia dos alemães durante toda a guerra. Muitos generais alemães acreditaram que após 1941 o Führer enlouquecera de vez ao determinar, sem exceções, a dizimação das massas eslavas.
A loucura de uma política nazista de diretrizes rígidas, incapaz de admitir exceções ao genocídio em massa, não foi apenas perversa, mas desastrosa, demonstra Mazower. Perpetuou um nacionalismo fanático, responsável por impossibilitar à maioria dos povos conquistados qualquer tipo de cidadania ou o direito à vida. A loucura do império de Hitler dissimulou até mesmo as bases podres da ciência racial nazista. Saber distinguir um alemão de um eslavo (ou até de um judeu) não era algo passível de consenso. Foram silenciados os integrantes da ciência eugênica nazista que, após enormes pesquisas para apontar os eslavos “germanizáveis”, duvidaram até mesmo da existência de uma “raça alemã”. Otmar von Verschuer, chefe de Josef Mengele, chegou a caracterizar os judeus como “uma variedade mestiça, basicamente indistinguível dos alemães em termos de sangue”.
Depois de consultar extensa documentação inédita, Mazower mostra como esses debates nunca chegaram ao grande público, pois foram muito bem protegidos pelo regime. O que chegava e a paranoia de Hitler divulgava, sobretudo depois de 1941, eram as “características” que os “antropólogos raciais” nazistas atribuíam aos judeus: “O balanço do andar, o gosto pelo alho, as neuroses, a fala intelectualizada e tagarela e a tendência ao crime de colarinho-branco”. Um pitoresco que beirava àquela compulsão típica dos transtornos mentais.
Ao contrário da pesquisa de MazowerOs Últimos Dias de Mussolini, de Pierre Milza (Jorge Zahar, 256 págs., R$ 49,90), não parece ser livro resumível em uma anedota representativa, apesar de o tema também se prestar a um enredo de humor negro. Biógrafo de Benito Mussolini, o historiador francês apresenta uma detalhadíssima reconstituição das 72 horas finais do Duce, em abril de 1945, e de tudo o que ainda restava da carcomida República de Saló, aquela parte da Itália não ocupada pelos aliados e ainda sob controle dos fascistas.
Os testemunhos mais contraditórios do episódio da execução de Mussolini e de sua amante, Clara Petacci, são examinados por Milza, que derruba o difundido mito de uma Itália majoritariamente voltada contra o Duce e de um punhado de fascistas irredutíveis a soldo dos nazistas. A reconstituição da polêmica retirada de Mussolini em direção a um suposto “refúgio alpino” mostra que na realidade a Itália foi durante quase dois anos cenário de uma autêntica guerra civil entre duas minorias, a dos partigiani(comunistas em grande parte) e das milícias fascistas. Entre os dois inimigos estava a maioria de italianos desamparada e obcecada com as misérias da vida cotidiana resultantes do confronto bélico.
Entre as inúmeras versões e os variados testemunhos daqueles dias, algumas questões permaneceram sem respostas, e Milza não hesita em apresentá-las ao leitor com impressionante riqueza de detalhes. Onde foram parar a fortuna e as duas sacolas de documentos confidenciais que o Duce e seu séquito carregavam na bagagem? Surpreendentes, nesse sentido, são as interpretações do mais notável historiador do fascismo, Renzo de Felice, de que Mussolini levava consigo uma parte da correspondência trocada com Churchill, incluindo duas cartas de 1939 particularmente comprometedoras para o estadista britânico.
Felice morreu em 1996, sem concluir seu último trabalho e sem indicar fontes confiáveis nas quais se baseara. Que o velho leão britânico tenha tido todos os motivos para não desejar uma exposição pública de suas anteriores declarações de admiração em relação ao Duce hoje é fato estabelecido pela historiografia. Mas que Churchill tenha, por isso mesmo, mobilizado agentes do serviço secreto britânico tanto para evitar o julgamento público de Mussolini (como queriam os outros aliados) quanto para colaborar com os partigiani no fuzilamento antecipado do ditador constitui fato sem sustentação.
De qualquer forma, os historiadores ingleses, churchillianos ou não, jamais perderam a oportunidade e, fundamentados na abertura dos arquivos do IS britânico, em 1998, deram o veredicto de que tais documentos nunca existiram. Milza, contudo, não considera o caso completamente resolvido, mesmo porque frequentou bastante os arquivos para perceber seus silêncios e omissões, sobretudo quando se trata de serviços secretos, cujos atos destinam-se à sombra. E, como qualquer historiador equilibrado, não hesita em questionar: seria apenas para exercer seu talento de pintor que Churchill decidira passar as férias exatamente onde Mussolini vivera os últimos instantes de sua vida? Este é aquele ponto ambíguo no qual os historiadores manejam seus holofotes giratórios, iluminando diferentes cenários do passado.
Seja como for, embora tivesse inúmeros admiradores, fanáticos por sua verve e carisma, Mussolini, ao contrário daquela piada hitlerista, dificilmente correu o risco de ser confundido com os loucos do hospício. Mas seu comportamento nos últimos dias, de silêncio, hesitação e abulia, poderia muito bem ser visto como parte daquela anedota macabra que resultou na mais hedionda matança do século XX.

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